O HOMEM-ARANHA DE STAN LEE E JOHN ROMITA: COM GRANDES PODERES, GRANDES CHOQUES GERACIONAIS

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Essential Spider-Man, vol. 2, 3, 4 e 5
[Amazing Spider-Man #39-102, 105-110]
Stan Lee, John Romita, Mike Esposito, Jim Mooney, John Buscema, Gil Kane et al.
Marvel, 1966-1971 [ASM] e 1997-2002 [Essentials]

Steve Ditko, o co-criador do Homem-Aranha, deixou de desenhar a série do personagem na edição #38. Isso foi no início de 1966: um dia ele chegou na redação da Marvel, deixou as páginas originais do gibi com a secretária de Stan Lee e pediu que ela lhe avisasse que aquilo seria tudo. Ele nem desenhou a capa de sua última edição, que foi montada no bullpen a partir de quadrinhos do interior do gibi.

O motivo pelo qual Ditko deixou a série é objeto de frequente especulação entre o nerdismo de quadrinhos. Seria por não ser reconhecido [e consequentemente remunerado] como seu escritor? Isso não explica porque ele deixou a série naquele momento, uma vez que essa situação perdurava há pelo menos um ano; e Ditko pediu demissão no mesmo dia em que receberia um aumento de cinco dólares por página.

Seria a divergência que ele mantinha com Lee sobre a identidade do Duende Verde? Ditko queria que fosse um personagem novo e desconhecido, enquanto Lee queria que fosse Norman Osborn. De novo, isso não explica porque Ditko deixou a série naquele momento, já que esse problema existia há anos [a primeira aparição do personagem fora em Amazing Spider-Man #14]. Também não parece coerente com outras coisas: foi Ditko que sugeriu que o Duende Verde fosse um humano [e não um… duende verde]: não é, portanto, como se o personagem fosse uma ideia que Lee tivesse criado e nutrido desde sempre, e sobre a qual estivesse disposto a se indispor com Ditko. E o recurso narrativo [vilão de identidade secreta] já fora utilizado em edições anteriores. Existiam, portanto, precedentes em que a diferença entre os dois sobre o assunto fora resolvida de forma satisfatória.

Uma explicação mais narrativa e menos fofoqueira é a seguinte: história que Ditko tinha para contar chegou ao fim. É bastante claro que ele tinha um objetivo: mostrar como Peter Parker se tornou um herói, contra tudo e contra todos. Também parece evidente que ele fez isso em The Amazing Spider-Man [ASM a partir de agora] #33. Daí só se precisa dar um pulinho para concluir que Ditko viu nos meses seguintes que não fazia mais sentido que ele permanecesse na série, motivo pelo qual a edição #38 parece uma paródia: tem todos os elementos das outras histórias do Homem-Aranha, menos o sentido.

STAN LEE



Faz mais ou menos trinta anos que o nerdismo articulado olha para os fãs de Stan Lee de soslaio. Ele deve ser a primeira celebridade dos quadrinhos a ser problematizada: o The Comics Journal faz beicinho ao falar sobre ele desde os anos 80. Olhando a repercussão sobre a sua morte, é fácil entender por quê.

Quase todos os grandes portais tratam Lee como "o homem que criou os heróis da Marvel". Isso é, na melhor das hipóteses, uma meia verdade: ainda que Lee tenha participado da criação da maioria dos personagens dos primeiros anos da editora, o fez em grau variável; e o alcance dessa participação sobre o efetivo sucesso dos personagens é ainda mais variável. 

Isso é fácil de entender quando você tem em conta que quadrinhos são um meio eminentemente colaborativo, que ocorre ao longo do tempo, e que dá para definir de forma mecânica qual foi a colaboração de cada quadrinista envolvido para o sucesso de um personagem. Quanto do sucesso do Quarteto Fantástico ou de Thor pode ser atribuído aos diálogos de Lee, e quanto à grandiosidade dos desenhos de Jack Kirby? Quanto do sucesso do Homem-Aranha pode ser atribuído ao carrossel de vilões-bicho, e quanto a Steve Ditko e suas neuras? Quanto da revolução que a Marvel representou era puramente visual -- e quanto da parte não visual de fato foi criada por Lee, o homem que escrevia tramas resumidas e diálogos?


O CALEIDOSCÓPIO: CAPITÃO BRITÂNIA, DE ALAN DAVIS, DAVE THORPE E ALAN MOORE:

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Capitão Britânia
Alan Moore, Alan Davis, Dave Thorpe, Helen Nally e Andy Seddon
[Panini, 2015]

Antes de atravessar o Atlântico, o Alan Moore escreveu três gibis marcantes: V de Vingança, Marvelman, e Capitão Britânia.

Capitão Britânia, mesmo sendo o seu único trabalho-trabalho para a Marvel [ainda que através da sua subsidiária britânica, Marvel UK], é o mais ignorado. No entanto, das três séries também é a que melhor oferece um panorama da carreira de Moore dentro e fora das quatro linhas dos quadrinhos: de perto, é possível enxergar nessa série pedacinhos de gibis tão diferentes quanto D.R. & Quinch e Monstro do Pântano, Watchmen e The Birth Caul, além de tretas bizantinas que fizeram dele esse ermitão moderno.

Não é, no entanto, um panorama simples. A melhor forma que eu encontrei de expô-lo foi agrupando desmontando a série em pedaços para reagrupá-la em capítulos temáticos. Isso não está muito longe da forma que Moore começou a trabalhar na própria hq: e é essa técnica de approach que nós começamos a resenha:

STEVE DITKO



Morreu Steve Ditko.

Ao redor dos meus vinte anos, e por diferentes motivos, passei o verão de uns três anos seguidos em Torres -- a praia do RS que está mais próxima de SC, geográfica e esteticamente, pra vocês que não são aqui da região.

Na condição de ser nerdoso, isso me dava bastante tempo livre: o que que eu ia fazer na praia, certo?

Para a minha sorte, acabei descobrindo um sebo de quadrinhos na cidade. Ele era administrado por um tiozinho meio hippie (ele falava “bicho”; já tá bom, né?), que transformava o escritório de arquitetura de sua esposa em uma caverna de gibis a venda. Ficava no subsolo de um prédio comercial. Os gibis eram caros, mas vários. O dono não me enxotava e dava assunto. E eu não precisava me preocupar com o sol. Evidentemente, comecei a ir lá todos os dias. 

Acho que é a isso que chamam de moleque sarnento.


FRANK MILLER BEGE: THE DARK KNIGHT RETURNS: THE LAST CRUSADE DELUXE EDITION, DE FRANK MILLER, BRIAN AZZARELLO, JOHN ROMITA JR. E PETER STEIGERWALD

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The Dark Knight Returns: The Last Crusade Deluxe Edition
Frank Miller, Brian Azzarello, John Romita Jr. e Peter Steigerwald.
[DC Comics, 2016]

Desdobrar a resenha de uma hq em análises separadas do argumento, do roteiro e do desenho deve ser algum tipo de falácia: no final das contas, o que se está fazendo é deixar a própria hq, que é a união desses elementos, em um segundo plano. 

No caso de The Last Crusade, no entanto, isso parece inevitável. Assim que foi anunciado que as novas histórias ambientadas no universo do Cavaleiro das Trevas seria produzidas em equipe [com Brian Azzarello e John Romita Jr., no caso de The Last Crusade, e Andy Kubert, no caso de Dark Knight III], a pergunta que ecoou pela nerdosfera foi sobre qual seria a participação de Frank Miller no processo -- além de fornecer o nome e pegar o cheque.

É fácil entender o porquê. Muito embora duas de suas melhores hqs tenham sido feitas em parceria [A Queda de Murdock e Batman: Ano Um], disso faz uns trinta anos. A parceria, ainda, com um dos melhores desenhistas de quadrinhos disponível: David Mazzucchelli. Nas suas outras hqs, Miller trabalhou sozinho, ou em parceria apenas na colorização e na arte-final -- mesmo assim exercendo considerável controle sobre as duas coisas: taí a treta que ele teve com Klaus Janson por conta da arte-final de O Cavaleiro das Trevas que não me deixa mentir. Ele nunca trabalhou em parceria com outro roteirista.

Foi assim que ele se tornou o principal auteur dos quadrinhos americanos ainda em atividade: fazendo exatamente aquilo que ele mesmo pensou em fazer. Pense na confusão mental dos monólogos de Marv em um temporal de tinta branca sob a escuridão da página preta: aquela história foi pensada para ser contada daquele jeito; aquele jeito foi pensado para contar essa história. 

Por isso é pertinente começar a olhar The Last Crusade por aquele ângulo: parece pertinente saber até que ponto ele corresponde à vontade de um cara idiossincrático como Miller, o motivo pelo qual você se interessou pelo gibi no final das contas.